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sábado, 5 de julho de 2008

POSSESSÃO


POSSESSÃO

(Possession, 1981)


“Possessão” é dirigido por um polonês, falado em inglês e protagonizado por uma francesa. Os diálogos são estranhos, como uma tradução de um original perdido, criando um sentimento de ‘fora de lugar’, que se estende aos atores e às próprias cenas. Este fora do lugar é antes de mais nada onde encontra-se o próprio diretor Andrzej Zulawski, exilado na França e filmando na Alemanha, com seus filmes confiscados pelo Estado Polonês e sua obra banida de sua terra natal. As primeiras imagens do filme são do Muro de Berlin, encadeando blocos cinzentos de concreto e uma cruz em homenagem a uma vítima. Está instaurada a cena onde atuam os personagens. Da janela do automóvel em movimento, o travelling avista uma frase pichada contra o muro – “O muro deve ser derrubado”. O carro percorre ruas desérticas. A câmera assombra Anna (Isabelle Adjani), como um agouro, pelos caminhos do conjunto habitacional até encontrar Mark (Sam Neill), que salta do carro trazendo suas malas. Estabelece-se o conflito entre os personagens, e a atuação dos atores será sempre suprareal, como se estivessem sob um transe – a Berlin que os abriga é uma cidade em transe. Ele pousa as mala. Ergue as malas, num gesto teatral, coreografado. Câmera e personagens constroem um ballet de gestos e movimento que será uma constante ao longo do filme. A menção da palavra ‘zoo’ choca Anna, que sai desesperadamente. Este desespero evolui em espiral dentro do filme, predominantemente filmado com grandes angulares.







O espaço da ação é um espaço mental, distorcido, dilatado, não é à toa que a grande angular domina o filme, distorcendo a realidade.Mas como diz a própria Anna – não se trata de tão somente distorcer a realidade, mas de atravessá-la; e encontrar o que não é humano, o que é divino, além da loucura e do câncer, para continuar com as palavras de Anna. Dentro do apartamento dilatado pela lente e a construção do cenário, Anna à esquerda, na cozinha, Mark à direita na porta do banheiro, as malas no ângulo, faz-se uma relação perpendicular, cria-se a impossibilidade de os dois estarem no mesmo plano. Bob, o filho pequeno do casal, é o ponto capaz de unir os dois. Na discussão no Café Einstein mais uma vez os personagens são posicionados em ângulo, e não no mesmo plano, como se fossem retas que se atravessassem. A separação dos dois não é possível, assim como o Muro. Berlim pesa e ecoa no filme. A música dominante dá um sentido crônico, para além do cronológico, e envolve os acontecimentos apagando as relações causais de encadeamento, criando um torvelinho, uma neurose, onde perde-se a noção de tempo e o espaço é dado sempre pela presença do Muro, que se vê tanto da janela do apartamento de Mark como da do novo apartamento de Anna. A câmera a 90º passeia sobre os corpos nus dos dois, homem e mulher, oferecendo uma visão divina, um olho de Deus. Também quando Mark surta no quarto de hotel a câmera assume este ponto de vista vertical, do ser, que paira sobre os entes. O contra plano é quando Anna suplica diante da cruz, na Igreja, como Jeanne d’Arc, a câmera por trás do corpo do Redentor. A imagem do Redentor é evocada também quando Mark despe o filho e levanta delicadamente seus braços, parando para admirá-lo. Esta mesma imagem será repetida com Anna no lugar de Bob, ao som de ruídos de passos ecoando por um corredor. O eco dos passos é o eco das imagens análogas - anterior em que o filho tem os braços e erguidos; e posterior, onde Anna irá despir Mark - santíssima trindade de mártires.

Anna chega em casa sempre com sacolas de compras; uma histeria com as compras e a função “do lar”. Mais uma vez a representação vidrada, os atores “possuídos”, fantasmagóricos, hipnotizados, em choque. E as bolsas tornam-se mais do que um objeto de cena, elas são ícones da patologia feminina do supermercado, que vai num crescendo, comprar comida, preparar comida, o vestido sujo e desabotoado, como ela mesmo diz “representando papéis, dividida”, até chegar ao estágio em que ela guarda as roupas na geladeira, como um autômato com defeito. Os cenários são espaço vazios, amorfos, que perdem suas coordenadas euclidianas; os personagens perdem o senso de direção; Anna diz que irá “Downtown”, mas o que significa esta expressão na cidade dividida? Toda conversação é esquizofrênica. Heinrich, o amante de Anna, também é tomado pela esquizofrenia e deixa na porta da casa de Mark um rolo de filme. E é no filme dentro do filme, metacinema que explicita a metafísica, que Anna discorre sobre a dualidade entre fé e acaso. Duas irmãs, lutando uma a outra a outra. Heinrich encara Mark: “Não há nada a temer a não ser Deus.”“Deus é uma doença”: responde Mark. Se Deus é uma doença, como na visão de Nietzsche do Cristianismo, entregar-se a Deus é adoecer, e é isto que acontece à Anna que suplica diante da cruz, antes de ter uma crise com espasmos e vômito na estação de metrô, num plano-sequência magistral. O filme tem tons azuláceos, roxo, cinzento, salpicado de vermelho, geléia de morango com a qual o pequeno Bob se lambuza, prenúncio do sangue de Anna e Mark. A própria imagem não tem um aspecto saudável, se pode dizer que está também doente. A câmera, muitas vezes autônoma, move-se como uma doença, reunindo pathos e orgânico, arrasta-se sobre os personagens. Esta percepção plástica da loucura, que alia perspectiva, perpendicularidade, e grandes angulares, tende ao bizarro, à maneira do mal estar gerado por Polanski em ‘Le Locataire’ e ‘Repulsion’ – Anna, como Carol, é capaz de matar. O sobrenatural é tratado, como na tradição que vai do expressionismo alemão a David Lynch, através da figura do duplo. A professora primária de Bob é um duplo de Anna, e também interpretada por Isabelle Adajani, mas com lentes que tornam seus olhos ainda mais claros. O duplo de Mark também terá olhos diferentes, mais escuros. Se o olho é a janela da alma, uma mudança de olho é uma alma alterada, faustiana. O duplo, o outro, é o avesso, é o sinistro, que faz adoecer e assume o seu posto, usurpa o seu lugar, e esta substituição termina ao som de bombas e ao preço do suicídio do filho. ‘Possessão’, muitas vezes classificado como um filme de horror, é uma obra extremamente política, onde o horror é a opressão totalitária, do Estado, de Deus, do Absoluto. Realizado com um rigor raro no cinema desta ou daquela época, é um filme que atravessou muito bem o tempo, e segue atualizando seus significados. Vale a pena rever.





















FICHA TÉCNICA


Titulo Original: Possession

País: França


Gênero: Terror/Arte

Diretor: Andrzej Zulawski
Elenco: Isabelle Adjani, Sam Neill, Heinz Bennent, Margit Carstensen, Michael Hogben
Ano: 1981
Duração: 123 min

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